Leia, na reportagem do Jornal da USP, os relatos dos autistas que cursam graduação e pós-graduação
Por: Amanda Mazzei | Jornal da USP
Pouco compreendido pela ciência e carregado de estereótipos no imaginário comum, o autismo faz parte da vida de estudantes que chegam à universidade e cursam graduação e pós-graduação.
O último Censo da Educação Superior de 2019, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), mostra que eles são pouco mais de 1.500 matriculados em cursos de graduação espalhados pelo País. Número que pode estar subestimado devido à dificuldade de diagnóstico e falta de acesso aos serviços de saúde especializados.
“É importante que as pessoas entendam cada vez mais sobre autismo, para que sejam menos capacitistas com autistas e não os subestimem”, alerta Priscila*, que tem 28 anos e cursa mestrado no Instituto Oceanográfico (IO) da USP. Ela obteve o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA) aos 27, mas suspeitava desde a pré-adolescência. “Eu não escondo que sou autista. Colegas e professores sabem. Até agora, tive a sorte de todos na Universidade serem bem abertos para aprender e entender minhas necessidades, mas tenho consciência de que nem sempre é assim. Muitas pessoas mantêm ideias erradas sobre o autismo e tratam autistas de forma infantilizada e preconceituosa. Isso acontece comigo no dia a dia, em todos os ambientes.”
Apesar da experiência pessoal positiva no ambiente acadêmico, a estudante considera que falta inclusão nas aulas. “Alguns professores não entendem certas demandas simples de pessoas neurodiversas, ou características, como a dificuldade de olhar nos olhos durante as explicações”. Ela conta que já teve problemas por sua forma diferente de assistir às aulas. “O professor achou que eu não estava prestando atenção e eu tive que explicar que me concentro melhor desta forma.”
Giulia Jardim Martinovic foi diagnosticada aos 5 anos de idade e diz que a vida de um estudante autista no ensino superior não é fácil. “Quando entrei na faculdade, em 2019, senti falta de apoio específico e vi amigos autistas desistindo de se formar.” Ela cursa a graduação em Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e relata ter ouvido histórias de discriminação no ambiente universitário. “Um rapaz me contou uma experiência muito ruim, em que um professor disse que a universidade não era lugar para ele, que ele deveria procurar um curso técnico.”
Outro estudante, Gabriel*, de 24 anos é mestrando em Filosofia, também na FFLCH, e recebeu o diagnóstico no ano passado. Ele acredita que um cenário de verdadeira inclusão dos neurodiversos exige que alunos, professores e coordenação aprendam mais sobre o autismo. “Os esforços de conscientização geral podem colaborar muito para melhorar as experiências dos autistas na universidade.”
Foi pensando nessa importância de conscientizar a comunidade acadêmica sobre a neurodiversidade e necessidades de alunos autistas — além da criação de estruturas de apoio a essas necessidades — que Giulia resolveu fundar o Coletivo Autista da USP (CAUSP), do qual Priscila e Gabriel são membros. O maior objetivo da organização é ampliar a permanência estudantil de estudantes com o transtorno.
Várias gradações de um mesmo transtorno
De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), o TEA é um distúrbio do neurodesenvolvimento, com três níveis de suporte: (1) leve, (2) moderado e (3) severo. Apesar dessa divisão, o autismo é um espectro, o que significa que, embora existam características gerais, o TEA não pode ser lido de uma forma linear — cada autista é único. Universitários autistas, de acordo com o CAUSP, são sobretudo dos níveis 1 e 2 de suporte.
As características do TEA dizem respeito principalmente à capacidade de cognição, linguagem e socialização, e envolvem, em graus variáveis: dificuldade de entender nuances sociais, dificuldades com comportamentos não verbais, dificuldades para manter e compreender relacionamentos, dificuldade com mudanças, dificuldade na coordenação motora, e sensibilidade alta em um ou mais sentidos.
De acordo com o Coletivo Autista, os estereótipos do autista “gênio” ou “incapaz” não dão conta da realidade, uma vez que existem todos os tipos de inteligências para alguém dentro do espectro, “tanto condições paralelas como altas habilidades e superdotação, quanto um QI médio, alto ou baixo, ou mesmo a deficiência intelectual”.
É importante lembrar que o TEA é considerado uma deficiência e, por isso, os autistas são PCD (Pessoas Com Deficiência) e devem ter assegurados todos os direitos da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência.
Saiba mais sobre o autismo com Fernanda Dreux Miranda Fernandes, fonoaudióloga e professora associada livre-docente da Faculdade de Medicina (FM) da USP, em entrevista para o Jornal da USP No Ar, da Rádio USP.
Coletivo Autista: uma rede de apoio
Giulia conta que foi a vontade de que autistas não apenas ingressassem na Universidade, mas também se formassem, que a fez criar o Coletivo. “Meu sonho é ver autistas médicos, psicólogos, professores, jornalistas etc. Queremos essas pessoas porque elas pensam de uma forma muito original, fora da caixinha, e eu acho que o mundo será um lugar bem melhor com mais autistas se formando.”
Criado no dia 12 de maio, o Coletivo, cujos membros são alunos que não necessariamente possuem o transtorno, conta com mais de 35 voluntários de diversas unidades da USP, que organizam as atividades do grupo. Atualmente, possuem mais de 1.300 seguidores no Facebook e também no Instagram.
Além de se colocar como um espaço onde estudantes autistas podem se encontrar e se integrar a redes de apoio, o Coletivo vai oferecer acompanhamentos pensados a partir das necessidades dos alunos com TEA, para ampliar sua permanência na USP. São as mentorias, tutorias e o apoio psicológico, que começam em agosto.
As atividades, por enquanto em formato on-line, vão dar suporte tanto em conteúdos didáticos específicos dos cursos — como biologia, cálculo, escrita acadêmica, latim, etc. — quanto aconselhamentos em relação a planos de estudos, questões burocráticas, carreira e mercado de trabalho. O grupo de apoio psicológico conta com graduandos em Psicologia e uma psicóloga formada. O Coletivo também está produzindo cartilhas e publicando conteúdos sobre autismo em suas redes sociais, como entrevistas com autistas não-binários e artes informativas.
Giulia destaca que o Coletivo Autista da USP é pioneiro no Brasil. “Pelas nossas pesquisas, não existe nenhum coletivo autista que apoie a permanência universitária, isso porque a maioria dos programas voltados a autistas é para crianças. Queremos nos expandir, e esse processo já começou com unidades na UFRJ, UFSC, UFRGS e Mackenzie.”
A iniciativa já rendeu premiação no Prêmio Diversidade USP, promovido pelo coletivo PoliPride da Escola Politécnica (Poli) da USP, com um 2º lugar geral e em 1º lugar na categoria Acesso, Inclusão e Permanência de grupos minoritários na USP.
O Coletivo Autista utiliza em seu logotipo a representação simbólica do movimento da neurodiversidade, que é o símbolo do infinito colorido em arco-íris. O termo “neurodiversidade” foi cunhado pela socióloga autista Judy Singer. O movimento propõe uma leitura do autismo — e também de outras condições, como o TDAH — sobretudo como uma diferença, e não uma patologia, chamando atenção para as barreiras sociais como o principal fator que restringe as pessoas com deficiência. Seguindo essa concepção, o Coletivo Autista se vale da nomenclatura “neurodiverso” ou “neurodivergente” para autistas, enquanto que não autistas são chamados “neurotípicos”.
Para entender o autismo
Várias séries em exibição nas plataformas de streaming buscam retratar a multiplicidade do universo autista. Confira as produções indicadas pelos membros do Coletivo:
"Muitas vezes, autistas são retratados na mídia de maneira estereotipada e preconceituosa, mas isso vem mudando com a inclusão de atores autistas, como na série Everything’s gonna be okay", explica Priscila. Os personagens são autistas na série e na vida real, e durante as gravações o diretor também foi diagnosticado como autista. Para Giulia, essa série é revolucionária: "A protagonista é uma garota autista, e não é uma garota gênio de exatas. É uma garota normal... A atriz que a interpreta é autista também. Recomendo muito essa série!"
Em Atypical, o protagonista é um rapaz autista que encontra dificuldades no ensino superior. Giulia recomenda a série, "apesar de o Sam ser interpretado por um ator não autista". Para ela, é uma produção bem realista. "É diferente de muitas séries e filmes em que autistas são retratados ou como estranhos que são gênios da matemática, ou como pessoas totalmente incapazes. Nessa série, inclusive, eles contrataram atores autistas para fazer parte do elenco. Eu achei muito legal."
Love on the spectrum é um reality show disponível na Netflix que recebeu aclamação da crítica especializada. Produzido em forma de documentário, a série aborda autistas em encontros e relacionamentos amorosos. A série é importante porque desmistifica a ideia de que a pessoa com autismo não tem interesse em interagir ou se relacionar de forma sentimental com outra pessoa. Giulia gostou e recomenda.
Série de comédia, Special é baseado num livro de memórias que mostra a história de um homem gay com leve paralisia cerebral que decide reescrever sua identidade e buscar a vida que sonha. Seguindo o exemplo desta série, Priscila destaca que é preciso cada vez mais que as mídias incluam e ouçam autistas, mas também outras deficiências. Nessa produção também há um personagem autista interpretado por ator que possui o transtorno.
Demandas por inclusão
Em meio à desinformação em torno do TEA, os autistas costumam despender muita energia em explicações e justificativas das suas diferenças em relação aos neurotípicos. Pensando nisso, o grupo incentiva a realização de palestras e campanhas informativas para orientar a comunidade universitária.
“Em comparação com as deficiências físicas, o autismo não tem indícios tão visíveis, e eu acho que isso é um fator que dificulta para conseguir auxílio”, destaca Gabriel. “Geralmente, o aluno é quem já vai ter o ônus de fazer sua apresentação, de dizer que está no espectro, buscando compreensão. Deveria existir uma maior conscientização para que, uma vez que ele fizesse isso e se apresentasse como autista, o resto do suporte dessa relação social, que já é um pouco tensa ou desconfortável, fosse feita pelo professor ou coordenador, ou ainda por um outro funcionário.”
Priscila também chama atenção para a importância do momento de início das aulas, quando professor e classe se apresentam. “Seria bom que os próprios professores tomassem a iniciativa e perguntassem no primeiro dia de aula se há algum aluno com deficiência na turma, para que tudo seja conversado, detalhado e combinado.” Deve ser oferecida também a opção de responder por e-mail, caso o aluno não queira se expor para a classe.
Ser autista na Universidade
Gostei bastante do ambiente universitário e das minhas experiências dentro da classe. Talvez o grande problema da minha graduação seja mais relacionado ao âmbito da sociabilidade, e não o pedagógico, que eu não tenho dificuldade. Acho que os ambientes usuais de criação de sociabilidade na Universidade, que normalmente constroem amizades, como festas ou atividades políticas, não são fáceis para autistas... É uma situação muito desconfortável para mim. Por exemplo, é difícil entrar no espaço estudantil do meu prédio porque é muito caótico, com muita poluição sonora e visual"
Gabriel, mestrando em Filosofia na FFLCH USP
Eu sempre dediquei muita energia para prestar atenção durante as aulas, e saio com enxaqueca por causa da luz, do projetor, dos estímulos. Por isso eu preciso dar intervalos, sair para fechar os olhos e respirar. No caso da vida social, eu sempre fui muito reservada, e durante a universidade cheguei a conhecer bastante gente e a sair mais do que fiz durante a minha vida inteira. Mas sempre tive dificuldade de manter amizades, minha frequência social era bem menor do que a de todos da minha sala. Não sei como será quando as aulas presenciais voltarem, tenho mais dificuldades de manter o foco em tarefas e em aulas estando em casa, e a experiência de ficar em quarentena me fez regredir muito na questão social"
Priscila, mestranda em Oceanografia no IO USP
Quando eu entrei na USP eu me sentia muito triste, muito sozinha. Já no segundo semestre eu acabei conhecendo estudantes autistas e isso foi bem legal. O ensino a distância foi uma experiência melhor no sentido de conseguir conversar mais com as pessoas, interagir, e até criar o Coletivo Autista. Eu não sei se teria criado se fosse no presencial. Só que a parte didática é complicada, porque você está em casa, então acaba se distraindo. Eu aprendo menos no EAD, então preferia o ensino presencial, apesar de toda a dificuldade"
Giulia, estudante de Letras na FFLCH USP
Ela considera que, para além da conscientização sobre características gerais do autismo, é preciso um diálogo claro entre docentes, estudantes e coordenação, com esforço dos neurotípicos para a inclusão de pessoas neurodiversas no ambiente universitário. “Os processos de aprendizado de um autista podem ser diferentes daqueles de pessoas neurotípicas e, portanto, são necessárias adaptações e compreensão. Também é preciso se atentar às necessidades de cada um, pois apesar de sermos autistas e compartilharmos demandas, somos todos diferentes e consequentemente precisaremos de diferentes suportes durante as aulas.
Outro ponto importante é a avaliação de cada disciplina. O final do semestre pode se tornar um pesadelo para esses estudantes, já que muitos professores exigem seminários e outros trabalhos em grupo, além de participação e interação durante as aulas, para compor as notas finais de cada aluno. Isso é um problema porque os processos de socialização costumam ser extremamente estressantes para autistas. “Eu queria que os professores fossem mais flexíveis”, diz Giulia.
As questões burocráticas também são complicadas para autistas. “Pensei que isso era algo pessoal, mas quando levei para a reunião do Coletivo, descobri que muitos também vivem essa situação.” Gabriel relata dificuldade de “interagir com a face técnica ou burocrática, que é tão presente na vida universitária”. Ele diz que é sempre uma experiência “estressante ou angustiante” precisar resolver questões na seção de alunos ou na secretaria, e costuma pedir para conhecidos fazerem isso por ele quando possível.
Giulia também chama a atenção para a dificuldade com a interface do sistema de cadastramento nas disciplinas e na montagem das grades do curso. “Esse é um dos motivos pelos quais criamos as mentorias, para promover um apoio nesses momentos.”
Foi escolhida como mascote do Coletivo a raposa chamada Fay. “É um animal sagaz e ágil, o que contradiz o estereótipo de que autistas são lentos e não percebem o mundo ao seu redor. Autistas apenas tem sua própria percepção de tempo e enxergam o mundo por suas próprias lentes, como a nossa raposinha Fay”, disse o Coletivo Autista no Prêmio USP Diversidade. O Coletivo diz que a escolha do nome ressignifica crenças da Idade Média da Irlanda, Inglaterra e Escócia de que bebês autistas eram “changelings”, crianças trocadas pelas fadas. “Esses bebês eram frequentemente abandonados em florestas para morrer ou sofriam rituais para a retirada das fadas de seus corpos.”
Palavras de incentivo a autistas
Eu diria para as pessoas autistas que ser diferente é algo muito bom. Pensar fora da caixinha vai fazer diferença na sua vida, no futuro, quando a maior parte das pessoas no ambiente acadêmico e no trabalho vai ser neurotípica. Você vai brilhar por esse pensamento diferente que tem"
Giulia, estudante de Letras na FFLCH USP
A minha recomendação para alguém que se descobriu autista é: aumente sua exposição a espaços e pessoas autistas. A melhor fonte para não ver tantos estereótipos são os próprios autistas. Quem vai ter mais consciência das belezas e dos valores desse modo de ser e de estar no mundo são as pessoas que vivenciam isso a cada segundo de vida delas. Acredito que o Coletivo vai ajudar bastante com isso"
Gabriel, mestrando em Filosofia na FFLCH USP
Tenho orgulho de ser autista, e é importante dizer que ter orgulho de ser autista não é a romantização do transtorno e sim resistência. Eu tenho orgulho de mim e dos tantos autistas que seguem evoluindo e aprendendo tanto, mesmo que ainda sejam tão subestimados pela sociedade. Autistas existem, de todas as idades, gêneros, lugares, e precisam ser ouvidos"
Priscila, mestranda em Oceanografia no IO USP
* o Jornal da USP omitiu os sobrenomes a pedido dos entrevistados
Leia a matéria original no Jornal da USP.
Fotos: Jornal da USP / Divulgação