Artigo de Luiz Roberto Serrano, jornalista, superintendente de Comunicação Social da USP e santista roxo
Por: Luiz Roberto Serrano (*) | Jornal da USP
Pelé chegou ao Santos Futebol Clube em 1956. Eu tinha 9 anos idade e faço parte da geração de privilegiados que acompanhou seu futebol desse começo até o fim. Nesta sexta-feira, 23 de outubro, Pelé recebeu homenagens mundiais pelo seu 80° aniversário. Sua imagem e de seu alter ego, Edson Arantes do Nascimento, foram escrutinadas pela imprensa e pelos amantes do futebol. As alegrias que aquele time, liderado por ele, me deu, enquanto esteve em campo, são incomensuráveis.
O cronista carioca Nelson Rodrigues anteviu a saga do Rei em sua crônica A Realeza de Pelé, publicada na Manchete Esportiva, de 8/3/1958, sobre a atuação de Pelé no jogo Santos 5 x 3 América carioca, em 25/2/1958, no Maracanã, pelo Torneio Rio-SP. Aqui reproduzo o trecho final, com licença do genial jornalista:
“Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e, mesmo, insolente, que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas de pau. Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós”.
Em março de 1958, o Brasil se preparava para a Copa do Mundo daquele ano, a primeira conquistada pelo País, depois de ruinosas apresentações desde o primeiro torneio em 1930, especialmente na vexaminosa Copa de 50, que perdemos em casa, no Maracanã, para o vizinho Uruguai. A foto do time húngaro a que ele se refere é a do escrete daquele país que nos eliminou na Copa de 1954, na Suíça. Nelson Rodrigues foi profético. O mundo conheceu e reconheceu Pelé na Copa da Suécia, onde se tornou, aos 17 anos, o mais jovem Campeão do Mundo da história do futebol.
A partir desse momento, Pelé, à frente do talentosíssimo time do Santos, excursionou, encantando o mundo, até o começo dos anos 1970. No nosso verão, exibia-se pelas Américas, no verão do Hemisfério Norte, pela Europa – foi assim, arrecadando dólares no exterior, que o Santos conseguiu, por tantos anos, assalariar aquele time dos sonhos. Sua formação mais gloriosa foi: Gilmar, Lima, Mauro e Dalmo, Zito e Calvet Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. Claro, também houve Carlos Alberto, Clodoaldo, Joel, Tite, Rildo… e assim por diante. Por torneio de clubes, o Santos foi bicampeão do mundo e das Américas. Nem vou relacionar os títulos ganhos no Brasil, nesse período, para não inflacionar o texto.
Um dia Pelé parou. Depois de 18 anos, isso mesmo, 18 anos, no Santos e no Brasil. Aos 34 anos de idade, quatro depois de, com jogadas maravilhosas, ter liderado o Brasil no tricampeonato no México, foi jogar no Cosmos de Nova York, num projeto de popularização do soccer nos EUA.
Não havia amealhado fortunas como as atuais estrelas do futebol, que faturam cerca de dez vezes mais, se não mais, do que Pelé ganhava na sua época. O Rei jogou no Cosmos entre 1975 e 77 e passou a integrar o grand monde do marketing esportivo internacional, no qual está até hoje.
Vale lembrar que Pelé, além do seu magnífico e incomparável talento, teve sua carreira impulsionada por algumas circunstâncias favoráveis, como soe ocorrer com os predestinados.
Sempre ouviu seu pai, o Dondinho, jogador mediano que abandonou o futebol depois de uma contusão séria, que lhe dizia, baseado em sua própria experiência, que o sucesso que amealhava poderia desvanecer-se subitamente. É mérito de seu pai a simplicidade que sempre o caracterizou, incomum em estrelas de porte até menor, e que muito o ajudou na carreira. Comparem a sua história com a de inúmeros ídolos das quatro linhas.
Num acidente lamentável, Vasconcelos, meia-esquerda importante do Santos, teve sua perna quebrada numa partida nos estertores do Campeonato Paulista de 1956, por Mauro Ramos de Oliveira, então no São Paulo. Vasconcelos era ídolo da torcida, inclusive meu. Lembro-me de ter comentado com minha mãe, numa tarde em que ela me penteava com gumex, que queria ser igual a ele. O Santos, de todo modo, foi bicampeão em 1956 e Pelé ganhou a vaga de Vasconcelos, antecipando o início de sua trajetória estelar. Claro que ele se imporia rapidamente nas escalações do Santos, mas a infeliz contusão de Vasconcelos abriu o caminho mais facilmente.
Em função de mais um fracasso da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1954, os paulistas começaram a ganhar influência na então CBD – Confederação Brasileira de Desportos. O comando do escrete foi entregue ao fundador da TV Record, Rádio Pan Americana (hoje, Jovem Pan) e dirigente são-paulino, Paulo Machado de Carvalho, que insistiu que Pelé fosse para a Suécia, em 58, mesmo contundido no jogo de despedida do Brasil, contra o Corinthians. Do meu Santos, que fora bicampeão paulista em 1955 e 56, Carvalho levou Pelé, Zito e Pepe e este só não foi titular na Copa porque se contundiu no último amistoso a caminho da Suécia, contra o Internazionale de Milão.
O Rei Pelé foi o jogador que elevou mais do que ninguém o nome do futebol brasileiro e surgiu para o esporte e para a consagração num rico momento da economia e da cultura brasileiras, os otimistas anos JK. Pois bem, a comemoração de seus 80 anos coincide com a temporada, de décadas, em que o futebol brasileiro mais se apequena, involui para patamares cada vez mais baixos. As razões são muitas e variadas, podendo ser resumidas ao jargão “má organização do futebol brasileiro”. Será só do futebol?
Pelé jogou no Santos e no Brasil por longos e proveitosos 18 anos. Encantou-nos, em nossos estádios, em nossos gramados, por 18 anos. Hoje, os candidatos a craques que emergem das categorias de base de nossos clubes só sonham em ir para a Europa. Os dirigentes sonham em passá-los nos cobres para cobrir os crônicos déficits nos orçamentos dos clubes. E assim vemos filhos e netos pregados na televisão e na internet assistindo aos campeonatos da Inglaterra, da Espanha, da França, etc… A imprensa brasileira, toda semana, relata os gols feitos por brasileiros nos times do resto do mundo, claro, principalmente, nos europeus, oferecendo aos leitores uma espécie de prêmio de consolação.
É triste. Algo está profundamente errado.
É como se voltássemos ao tempo dos vira-latas.
Viva Pelé!
Leia o original em Jornal da USP.