Alfabetização escolar no Brasil das décadas de 1970 e 1980: conceituação, historicização e processos metodológicos

Se o método não é eficiente, devemos voltar ao método anterior?

Marcos Pereira dos Santos (*)

128px-Nuvola apps edu miscellaneous.svgDiante dos problemas educacionais existentes na contemporaneidade, muitas pessoas afirmam que a educação escolar das décadas de 1970 e 1980, por exemplo, era mais “rígida” e de melhor qualidade. Comenta-se que as escolas de ensino primário – 1ª a 4ª séries (atualmente equivalentes aos Anos Iniciais do Ensino Fundamental de nove anos) – eram melhor estruturadas, os professores mais qualificados e os educandos bem mais disciplinados e dispostos a aprender.

Entretanto, no que se refere ao processo de alfabetização escolar, em específico, há divergência de concepções acerca de seus pontos positivos e negativos, uma vez que o “ensino de primeiras letras” era (quase) todo baseado no uso de cartilhas escolares e em métodos tradicionais/conservadores de alfabetização.

Para que se possa melhor compreender esses posicionamentos, faz-se necessário, inicialmente, estabelecer as diferenças conceituais existentes entre os termos alfabetização e letramento – vocábulos de uso corrente no campo da Linguística nos dias atuais. 

A apropriação da escrita é um processo complexo e multifacetado, que envolve tanto o domínio do sistema alfabético/ortográfico quanto a compreensão e utilização efetiva e autônoma da língua escrita em práticas sociais diversificadas. A partir da constatação dessa realidade na escola brasileira de ensino fundamental é que se tem falado, atualmente, em alfabetização e letramento como fenômenos socioeducacionais distintos e complementares.

Grosso modo, pode-se definir conceitualmente alfabetização como o “processo específico e indispensável de apropriação do sistema de escrita, a conquista dos princípios alfabético e ortográfico que possibilitam ao aluno ler e escrever com autonomia” (CARVALHO e MENDONÇA, 2006, p.19). Ou seja: alfabetização diz respeito à compreensão e ao domínio do chamado “código escrito”.

Seguindo essa mesma linha de pensamento, Soares (2003) concebe a alfabetização como sendo a aprendizagem da técnica, do domínio do código convencional da leitura, da escrita, das relações fonema-grafema e do uso de diferentes instrumentos com os quais se escreve; não sendo, portanto, pré-requisito para o letramento. Em outras palavras, isso significa dizer que alfabetização é o ato ou efeito de alfabetizar, de ensinar as “primeiras letras”. Assim, uma pessoa alfabetizada é aquela que domina as “primeiras letras”, isto é, que possui as habilidades básicas ou iniciais do ler e do escrever.

Em contrapartida, o letramento pode ser entendido como o processo de inserção e participação na cultura escrita. Trata-se de um fenômeno que tem início quando a criança começa a conviver com as diferentes manifestações de escrita na sociedade e se prolonga por toda a vida. O termo letramento foi cunhado por Mary Kato, no início dos anos 80, e diz respeito a um “conjunto de práticas sociais que usam a escrita enquanto sistema simbólico e tecnologia, em contextos específicos e para objetivos determinados”. (KATO, 1986, p.7)

Dito de outra forma, isso implica afirmar que o letramento pode ser considerado um processo histórico-social e educacional complexo, que quase sempre é visto como associado à alfabetização. Contudo, existem letramentos de natureza variada, inclusive sem a presença da alfabetização. O letramento abrange a capacidade de o sujeito colocar-se como autor do próprio discurso linguístico, no que se refere tanto ao texto escrito quanto ao texto oral/verbal. Portanto, uma pessoa letrada é, de acordo com Kleiman (2003), aquela que é capaz de desenvolver e utilizar uma capacidade metalinguística em relação à própria linguagem.

Por tudo isso, muitos estudiosos da Linguística e da Sociolinguística, a exemplo de Bagno (2004; 2005), Cagliari (2004), Soares (1993; 2004; 2007), Tarallo (1985), entre outros, têm afirmado que alfabetização e letramento são práticas socioeducacionais diferentes, cada qual com suas especificidades próprias; porém complementares entre si e indispensáveis à vida social e profissional.

O entendimento acerca do que é alfabetização escolar por parte dos professores alfabetizadores acarreta, direta ou indiretamente, mudanças significativas na aplicação de estratégias metodológicas e didático-pedagógicas em sala de aula.

Historicamente, as discussões sobre a alfabetização escolar, no Brasil, se centraram na eficácia e eficiência de processos e métodos pedagógicos, prevalecendo, até o final da década de 1980, uma polarização entre os processos sintéticos e analíticos direcionados ao ensino do sistema alfabético e ortográfico da escrita.

As discussões sobre os vários métodos de alfabetização existentes e empregados na escola brasileira dos anos 70 e 80 são cercadas de grande polêmica.

Segundo Bierksteker (2006) e Mortatti (2006), os métodos de alfabetização mais utilizados no Brasil durante a década de 1970 foram os sintéticos (também denominados de silábicos ou tradicionais), isto é, aqueles que tomam como base a parte e dela vão para o todo. Os exemplos mais comuns são:

* Soletração: apoia-se na memorização e na pronúncia das letras (a; b; c; ... ; z), separadamente, para depois uni-las em sílabas (b + a = ba; c + a = ca etc.). Após isso, passa-se às palavras para finalmente chegar a frases e textos.

* Silabação: parte da família de sílabas (ba; be; bi; bo; bu; por exemplo) para formar palavras e frases.

* Fônico: baseia-se no som dos fonemas. O aluno reconhece os sons representados pelas letras e os combina para formar palavras. Exemplo: O som do b e o do a formam ba; e assim por diante.

Além dos métodos sintéticos, nos anos 80, no Brasil, foram empregados os chamados métodos analíticos de alfabetização (aqueles que vão do todo para as partes), dentre os quais podemos destacar:

* Sentenciação: parte da oração, que dela são retiradas palavras que são “esmiuçadas”.

* Palavração: inicia com a palavra. Dela se vai para a sílaba e, dessa, para o fonema (som) ou a letra.

* Global puro: não prevê a decomposição do texto em partes, mas o aprendizado do conjunto.

* Global de contos: considera o conto literário como sendo o ponto de partida para o ensino e o aprendizado da leitura e da escrita.

Vale destacar ainda, que, além dos métodos sintéticos e analíticos de alfabetização, havia também os métodos analítico-sintéticos – métodos mistos ou ecléticos que conciliam os métodos sintéticos e analíticos.    

“Nas décadas de 1970 e 1980, todos os métodos de alfabetização utilizados na escola apregoavam que o aluno, para poder ler textos reais, primeiro tinha que ser capaz de decodificar letras e sons (fonemas) corretamente. Não se lia, por exemplo, para uma criança que não sabia ler” (MORTATTI, 2006, p.56). Essa forma de pensar-fazer alfabetização na escola levou alguns estudiosos da pedagogia progressista histórico-crítica (ou pedagogia crítico-social dos conteúdos), a exemplo de Saviani (1995), com base em sua “teoria da curvatura da vara”, a questionar o modo pelo qual a educação brasileira, até o final dos anos 80, vinha sendo concebida e desenvolvida nos diferentes níveis e modalidades de ensino.  

Sobre a importância da “teoria da curvatura da vara” para a compreensão do processo de alfabetização escolar, pode-se assegurar que:

Se temos uma vara encurvada e queremos que ela fique reta, curvamos a vara para o lado contrário para que ela fique, depois, na posição vertical. Isso é uma metáfora para mostrar um movimento que acontece com frequência – se não sempre – na Educação. Fomos para o lado do construtivismo (que não é método), depois vimos que não é nada disso. A tendência pode ser curvar a vara para o outro lado, à espera de que ela fique reta. Mas, é preciso saber se é isso mesmo que teria de ser feito. É preciso saber o que significa esse “curvar para o outro lado”. Isso pode significar voltar ao antigo, ao tradicional. Muitos professores dizem: “Ah, isso não funciona, e os alunos não estão aprendendo a ler e a escrever; então vou voltar àquele meu velho método silábico de alfabetizar pela cartilha escolar, porque tudo antes corria muito bem”. (TFOUNI, 1995, p.27)

Entretanto, voltar para o que já foi (ou deveria ter sido) superado em termos de tendências pedagógicas liberais conservadoras (pedagogia tradicional, escolanovista e tecnicista) significa que estamos retrocedendo. Avançamos, no sentido literal da palavra, somente quando acumulamos o que aprendemos com o passado histórico, juntando a ele as “novidades” que o tempo presente nos revela. É a partir desse entendimento que os professores devem alfabetizar seus alunos na escola, tendo em vista o desenvolvimento de uma aprendizagem significativa por parte dos mesmos.

Dizemos isso, porque, em sentido estrito, alfabetização nada mais é do que o ensino do código da língua escrita, tendo em vista a aquisição das habilidades de ler e escrever. Limita-se apenas ao período inicial da escolarização. Já em sentido amplo, alfabetização é entendida como um fator de mudança de comportamento diante do mundo, que possibilita ao homem integrar-se à sociedade de forma crítica e dinâmica (MAROTE e MAROTE FERRO, 2002). Daí, o uso de cartilhas escolares e de outros recursos didático-pedagógicos congêneres, que apresentam apenas “lições” estanques e insossas, não ser recomendável para o desenvolvimento do processo de alfabetização de crianças na escola brasileira dos dias atuais. Segundo Charmeux (1995), eles se configuram simplesmente como “ferramentas prontas de aprendizagem”. E nada mais. 

A autora supracitada chama a atenção para o fato de que, dentre todas as “ferramentas prontas de aprendizagem” existentes, a cartilha escolar foi o material didático impresso mais utilizado na escola brasileira das décadas de 1970 e 1980 para o desenvolvimento do processo de alfabetização de crianças, jovens e adultos.

Em linhas gerais, podemos dizer que as cartilhas escolares são livros didáticos infantis produzidos especificamente para o período inicial da alfabetização de educandos. Elas apresentam um universo de leitura bastante restrito, em função mesmo de seu objetivo: trata-se de um pré-livro, destinado a um pré-leitor.

A cartilha escolar limita-se ao ensino de uma “técnica de leitura”, entendendo-se essa técnica como a decifração de um elemento gráfico em um elemento sonoro. A cartilha foi o recurso didático-pedagógico mais utilizado pelos professores brasileiros, nos anos 70 e 80, no processo de iniciação das crianças ao mundo da escrita; iniciação essa na qual os alunos eram levados a identificar os sinais gráficos (letras, sílabas e palavras) e associá-los aos sons correspondentes. As cartilhas escolares, coerentes com os postulados das metodologias tradicionais/conservadoras de ensino, partem da crença de que ensinando-se apenas a codificar e decodificar os sinais gráficos, os alfabetizandos são suficientemente capazes de aprender a ler e a escrever.

Apesar das divergências de concepções entre os(as) autores(as) de cartilhas escolares, há, na concepção de Barbosa (1992, p.54), um ponto que unifica todas elas, transformando-as em uma só: “a dependência do sistema de escrita em relação ao sistema oral”. Em outras palavras, isso significa dizer que (quase) todas as cartilhas escolares partem do pressuposto de que, para aprender a ler, o aprendiz deve transformar o signo gráfico em signo oral para, depois, chegar à compreensão do mesmo. O signo oral, nesse contexto, é utilizado como “mediador” da compreensão do texto escrito. Negando o papel dos olhos num sistema gráfico, o acesso à compreensão do texto escrito passa pelos ouvidos.

Posto isso, torna-se relevante salientar que o único objetivo das cartilhas escolares é colocar em evidência a estrutura lógica da língua escrita, tal como é concebida pelos métodos de alfabetização. Por isso, as cartilhas tendem a apresentar uma escrita sem real significado. Nesse sentido, a análise detalhada das diferentes cartilhas escolares existentes pode ser efetuada, de acordo com Cabral (2005), a partir do ponto de vista da Linguística, observando, por exemplo, o sistema ortográfico em relação ao sistema fonológico da língua.

Além dessas questões, vale observar que a cartilha escolar é um livro montado sobre “substantivos”, os quais compõem as listas iniciais de palavras-chave. Ao contrário do léxico, a sintaxe das cartilhas escolares é neutra e geralmente insípida, constituída de períodos simples, com orações absolutas e com predomínio de tempos simples sem auxiliares. É, em suma, uma “sintaxe de ninguém”: frases curtas, “soltas” e sem significado. Exemplos: Cacá caiu. A fita é para Fifi. Ivo comeu a uva. (MACIEL e SILVA FRADE, 2003)

Note-se que, nestes exemplos retirados de cartilhas escolares das décadas de 1970 e 1980, os textos são muito “pobres” em coesão, coerência e significado; sendo elaborados, normalmente, a partir de feixes de frases “soltas”, pouco ou nada relacionadas entre si. Portanto, a preocupação em fixar apenas o uso das letras resulta, consequentemente, em um texto insosso, sem significado e sem nexo.

Sem a pretensão de esgotar o assunto em pauta, faz-se necessário destacar ainda que o processo de aprendizagem do código escrito é lento e gradativo. Dessa forma, corroboramos com Ferreiro e Teberosky (1985) e Ferreiro (1989) ao postularem que talvez seja melhor não falar em alfabetização simplesmente, mas em graus/níveis de alfabetização.

Assim sendo, se rotularmos a aprendizagem do código da escrita como “alfabetização”, estaremos, de fato, salientando apenas uma parte do processo, bastante importante, é claro, mas não o processo de alfabetização em sua totalidade. Portanto, ser alfabetizado não é sinônimo de ser escolarizado. Pensemos a respeito!

 

Referências

BAGNO, M. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 31.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

_______. A língua de Eulália: novela sociolinguística. 14.ed. São Paulo: Contexto, 2005.

BARBOSA, J. J. Alfabetização e leitura. 2.ed. São Paulo: Cortez, 1992. (Coleção Magistério 2º Grau – Série Formação do Professor – v.16).

BIERKSTEKER, T. C. Alfabetização: uma individualização do ensino? In: Revista Olhar de Professor. Ponta Grossa: Editora da UEPG, v.9, n.2, p.377-390, jul./dez., 2006.

CABRAL, M. Como analisar manuais escolares. Lisboa: Texto Editores, 2005. (Coleção Educação Hoje – v.31).

CAGLIARI, L. C. Alfabetização & linguística. 10.ed. São Paulo: Editora Scipione, 2004.

CARVALHO, M. A. F.; MENDONÇA, R. H. Práticas de leitura e escrita. Brasília: Editora da UnB, 2006.

CHARMEUX, E. Aprender a ler: vencendo o fracasso. 2.ed. São Paulo: Cortez, 1995.

FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.

FERREIRO, E. Reflexões sobre alfabetização. 14.ed. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1989. (Coleção Polêmicas do Nosso Tempo – v.17).

KATO, M. No mundo da escrita. São Paulo: Ática, 1986.

KLEIMAN, A. B. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In: _____. (Org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. 6.ed. Campinas: Mercado de Letras, p.15-61, 2003. (Coleção Letramento, Educação e Sociedade).

MACIEL, F. I. P.; SILVA FRADE, I. C. A. Cartilhas de alfabetização e nacionalismo. In: PERES, E.; TAMBARA, E. (Orgs.). Livros escolares e ensino da leitura e da escrita no Brasil (séculos XIX-XX). Pelotas: Editora Seiva, p.27-51, 2003.

MAROTE, J. T. D. O.; MAROTE FERRO, G. D. O. Didática da língua portuguesa. 11.ed. São Paulo: Ática, 2002.

MORTATTI, M. R. L. Alfabetização. In: Revista Nova Escola. São Paulo: Editora Abril Ltda, ano XXI, n.197, p.55-58, nov./2006.

SAVIANI, D. Escola e democracia. 29.ed. Campinas: Autores Associados, 1995.

SOARES, M. Linguagem e escola: uma perspectiva social. 10.ed. São Paulo: Ática, 1993.

_______. A reinvenção da alfabetização. Disponível em: <http://www.editoradimensao.com.br/revistas/revista52_trecho.htm>;. Acesso em: 26/05/2003.

_______. Letramento: um tema em três gêneros. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

_______. Alfabetização e letramento. 5.ed. São Paulo: Contexto, 2007.

TARALLO, F. A pesquisa sociolinguística. São Paulo: Ática, 1985. (Coleção Série Princípios – v.9).

TFOUNI, L. V. Letramento e alfabetização. São Paulo: Cortez, 1995. (Coleção Questões da Nossa Época – v.47).

 

(*) Marcos Pereira dos Santosé doutorando e mestre em Educação; especialista em Administração, Supervisão e Orientação Educacional; especialista em Matemática e licenciado em Matemática pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Licenciado em Pedagogia pelo Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE). Escritor, poeta, cronista, articulista e pesquisador da área educacional (Formação de Professores, Tecnologias Educacionais e Educação Matemática). Professor adjunto da Faculdade Sagrada Família (FASF), junto a cursos de graduação (bacharelado/licenciatura) e pós-graduação lato sensu, em Ponta Grossa – Paraná. Endereço eletrônico: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.    

 

Comentários   

+6 # Tati Felix 14-09-2015 10:12
Bom dia,
Acredito que a alfabetização da década de 80 foi muito mais eficiente do que dos dias atuais. Embora fosse uma alfabetização técnica, ou como alguns autores dizem nesse artigo,"sem nexo", observo que meus contemporâneos (anos 80) são bem mais sucedidos no sentido "alfabetizados" do que nossos jovens de hoje. Sou professora de Sociologia do ensino médio e a grande parte de meus alunos hoje, entre 14 e 17 anos, infelizmente por conta deste novo método, são analfabetos! É preciso mudar a educação inicial urgente se o Brasil quiser mudar a realidade de nossa imagem perante a sociedade exterior!
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