Aulas de educação religiosa na escola brasileira de ensino fundamental: (ainda) um ponto nevrálgico?

É necessário respeitar as opções religiosas do aluno

Marcos Pereira dos Santos (*)

prof-marcos-pereira webHá quem diga que política, futebol e religião são coisas que não se devem discutir. Talvez essa concepção seja decorrente do fato de que se referem a temas bastante polêmicos, os quais são envoltos em vários tabus, estereótipos e preconceitos de todo tipo.

Nesse sentido, falar sobre religião, no contexto escolar, consiste num grande desafio para professores, educadores e pedagogos nos dias atuais. Trata-se de um ponto nevrálgico, um assunto deveras complexo, embora de importância capital para melhor compreender o mundo e o comportamento humano numa dimensão ética, moral, axiológica, holística e transcendental.

Em nossa experiência de mais de dez anos de docência em escolas das redes pública e privada, temos observado certa resistência ‘natural’ dos alunos, salvo algumas exceções, em estudar os conteúdos curriculares da disciplina de “Ensino Religioso” ou “Educação Religiosa”. O preconceito fica evidente quando alguns educandos definem tais disciplinas como sendo simplesmente “aulas de religião”. Outros ainda pensam em “catequese”, no sentido literal do termo, a qual pode ser entendida como sendo a “educação permanente e sistemática da fé. Supõe que a pessoa já fez a adesão de fé, que já se ligou a um grupo religioso, que faz parte de uma comunidade de fé e ali celebra, cresce espiritualmente, participa”. (CRUZ, 1997, p.13)

Ambas são assertivas falaciosas, uma vez que ensino religioso e catequese são práticas distintas, embora complementares, realizadas em ambientes educacionais diferentes. Dizemos isso, porque o objetivo principal do ensino religioso na escola é, na concepção de Figueiredo (1995, p.32), “levar os alunos a debater e refletir criticamente sobre o comportamento religioso das pessoas na sociedade e sua influência nos modos de ser, sentir, pensar e agir humano”.

Grosso modo, isso implica assegurar que o ensino religioso, na escola, tem em vista finalidades e características pedagógicas, devendo ser parte constituinte da formação integral dos educandos, abrindo espaços para aprofundar a relação com o transcendente e discutir as bases humanas do ato de crer e dos valores religiosos em geral. Desse ensino, também podem e devem participar, com proveito, aqueles alunos que (ainda) não optaram por uma religião definida, haja vista que o ensino religioso escolar tem como função precípua ajudar os educandos a melhor compreender o homem e suas relações com o transcendental em termos de potencialidades, limitações e perspectivas. 

Não se trata, pois, de impor ideologias ou filosofias dogmáticas de um ou outro credo religioso. O intuito deve ser o de repassar aos alunos algumas informações acerca do pluralismo de religiões existentes no mundo atual e, de forma particular, na sociedade brasileira contemporânea, em suas diferentes formas de manifestação na cultura geral, na cultura escolar e na cultura da escola (FORQUIN, 1993). Essa visão panorâmica sobre a pluralidade religiosa permite aos estudantes identificar a riqueza de pensamento inerente a cada credo religioso, do hinduísmo ao cristianismo. Entretanto, é preciso que eles tenham a iniciativa de “abrir o coração e a mente” para apreender os conceitos religiosos essenciais que muito contribuirão para a conquista de uma melhor qualidade de vida em todos os sentidos.

Teologicamente falando, a fé se expressa em certezas de coisas que se esperam, atitudes e ações. A fé sem obras é morta (BÍBLIA SAGRADA, 1993). Nesse contexto, as inúmeras doutrinas religiosas existentes nos dias atuais são, muitas vezes, entendidas como ‘soluções’ às várias inquietações e frustrações humanas. Embora não sejamos adeptos da concepção de que são as doutrinas religiosas, em si, as principais responsáveis pela elevação espiritual, ética e moral dos sujeitos sociais, corroboramos com Mo Sung (1991) e Piazza (1996), ao afirmarem que as pessoas que conseguem perceber mais nitidamente como as diversas ‘respostas de fé’ se relacionam com a busca de um sentido de vida estão, pois, em condições de viverem melhor sua opção religiosa.

Por isso, um ensino religioso não catequético seria útil também para aqueles alunos que estão preocupados com o seu crescimento na fé. Ele não deve ser, portanto, uma “coisa vaga”, insossa, que venha a desmerecer a opção religiosa. Segundo Gruen (1995, p.17),

[...] o ensino religioso escolar precisa permitir que, entendendo melhor a vida e as necessidades espirituais humanas, cada educando tenha plenas condições de visualizar com mais profundidade o valor das religiões em si, independentemente de credo.

No Brasil, em específico, as discussões sobre ensino religioso escolar se efetivam em cursos e encontros nacionais organizados e desenvolvidos, em geral, por iniciativa da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), onde são levantados muitos aspectos polêmicos, tais como: a identidade da educação religiosa, o pluralismo religioso, os programas curriculares para o ensino religioso nas escolas, a formação do professor de ensino religioso, entre outras questões. Mas, nem sempre todas as autoridades (eclesiásticas e não eclesiásticas) que têm poder de decisão sobre o ensino religioso participam desses debates, tornando-os assim pouco enriquecedores; embora de suma importância.

De modo geral, faz-se normalmente uma distinção entre o ensino religioso ministrado nas escolas privadas, que reflete diretamente a filosofia do projeto pedagógico e o espírito missionário da instituição escolar; e o ministrado nas escolas públicas, mais voltado para a necessidade de atender ao pluralismo de opções religiosas dos educandos. Entretanto, nos dias atuais, as escolas privadas têm percebido que o pluralismo de opções religiosas não existe somente nas escolas da rede pública de ensino. Também dentro das escolas da rede privada, sejam elas de denominação católica, metodista, batista, luterana, adventista etc. existem alunos que escolheram esse ou aquele estabelecimento de ensino por motivos diferentes da opção religiosa, em si.

Nas escolas católicas da rede privada de ensino, por exemplo, predomina uma educação religiosa fortemente marcada pelo estilo do carisma da congregação mantenedora da instituição escolar (LOURENÇO, 2014). Muitas dessas escolas se encarregam, inclusive, da preparação para o recebimento dos principais sacramentos (primeira comunhão e crisma), o que suscita grande polêmica, já que essa seria uma tarefa específica da família e da comunidade paroquial. Escolas privadas de outros grupos cristãos geralmente tratam de temas bíblicos, segundo a ótica da respectiva confissão religiosa.

No que diz respeito às escolas municipais e estaduais da rede pública oficial, o ensino religioso ministrado varia conforme os acordos e as regulamentações levados a efeito pelas respectivas Secretarias Municipais e Estaduais de Educação, as quais devem levar em consideração as seguintes determinações contidas no Artigo 33, incisos I e II, da atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei Federal nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996:

Artigo 33 – O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo oferecido, sem ônus para os cofres públicos, de acordo com as preferências manifestadas pelos alunos, ou por seus responsáveis, em caráter:

I – confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou do seu responsável, ministrado por professores ou orientadores religiosos preparados e credenciados pelas respectivas igrejas ou entidades religiosas; ou

II – interconfessional, resultante de acordo entre as diversas entidades religiosas que se responsabilizarão pela elaboração do respectivo programa. (BRASIL, 1996; grifos nossos)    

Atendendo ao disposto no Artigo 33, incisos I e II, da Lei Federal nº 9.394/96, e tendo em vista a diversidade cultural religiosa existente na sociedade brasileira contemporânea, faz-se necessário que o ensino religioso a ser ministrado nas escolas de ensino fundamental, das redes pública e privada, seja de cunho interconfessional, de modo que nas aulas de ensino religioso não haja separação por credos religiosos nem tampouco imposição ideológica alusiva a uma ou outra filosofia religiosa. Torna-se imprescindível, de acordo com Viesse (1994), respeitar as diferenças de opção religiosa e, consequentemente, a cultura religiosa de cada País, Estado e Município; tendo o cuidado de não fazer do ensino religioso um “corpo estranho” ao projeto político-pedagógico escolar, isto é, um “braço da igreja” dentro da escola. 

Em linhas gerais, pode-se dizer que há, de acordo com Catão (1993) e Junqueira (1995), vantagens e desvantagens em relação à modalidade de educação religiosa interconfessional: o ensino religioso interconfessional evita discriminação entre os adeptos das diversas igrejas cristãs, facilita a organização do trabalho educativo e pode ajudar muito no diálogo ecumênico, isto é, no respeito à identidade religiosa de cada pessoa sem “abrir mão” de sua própria identidade, na busca de colaboração e enriquecimento recíproco entre membros de grupos religiosos diferentes, e no reconhecimento dos valores presentes na busca de Deus feita pelas diferentes correntes religiosas. (CRUZ, 1997)

Em contrapartida, o ensino religioso interconfessional apresenta também alguns pontos negativos, uma vez que nem sempre o professor é capaz de resistir à “tentação de puxar a brasa para a sua sardinha”, ou seja, tentar converter os alunos para sua igreja, pois poucos docentes estão devidamente preparados para lidar com as diferenças entre as várias maneiras de viver a fé cristã e existe certa insegurança no momento de elaborar e ministrar as aulas de ensino religioso na escola, entre outros empecilhos.

Sem a pretensão de esgotar o assunto em pauta, é importante salientar ainda que, apesar dos avanços alcançados, as escolas brasileiras de ensino fundamental dos dias atuais ainda não conseguiram, de modo eficaz e eficiente, dar conta de atender à pluralidade de opções religiosas de seus alunos; nem tampouco de responder às indagações que gravitam em torno da “educação para o sagrado”, numa dimensão sociológica, ontológica, antropológica, teológica e teleológica. Daí os inúmeros questionamentos sobre a identidade e os objetivos do ensino religioso escolar, de viés (inter)confessional, se tornarem cada vez mais latentes, complexos e polêmicos.

Posto isso, tornar-se profícuo destacar que a religiosidade não existe no vazio: ela se manifesta nas várias religiões e suas variantes, apresentando-se sob novas “roupagens” com os mais variados matizes a envolver os sujeitos históricos, inseridos num contexto socioeconômico e político-cultural. Por isso, torna-se fundamental respeitar a opção religiosa de cada pessoa. Ensino religioso é, pois, um assunto que, por ora, está longe de gerar consenso entre famílias, autoridades religiosas, professores e alunos. Muita reflexão ainda terá de ser feita.

Nessa perspectiva, almejamos que o ensino religioso escolar possa, efetivamente, auxiliar os alunos a serem pessoas cada vez melhores, tanto na escola da vida quanto na vida na escola. Que nossos educandos de hoje possam, alicerçados na fé, construir um futuro melhor para todos, isto é, uma sociedade onde prevaleça somente a paz, a justiça, a igualdade de direitos e deveres, a honestidade, a concórdia, o amor ao próximo (altruísmo), a benevolência, a compreensão, a tolerância, o senso de responsabilidade, a temperança, a prudência, entre outras virtudes éticas.

Pensar, falar e escrever sobre educação religiosa na escola em tempos de globalização, de consumismo supérfluo e exacerbado, de avanços tecnológicos surpreendentes e de sexualidade “escancarada”, onde (quase) “tudo” parece ser permitido a “todos”, onde a exceção parece ter sido transformada em regra, é como que “pisar em ovos”. Trata-se, pois, de um ponto nevrálgico, um assunto polêmico e complexo; mas de fundamental relevância para pais, autoridades eclesiásticas, religiosos, educadores, pedagogos, professores e demais profissionais da educação em geral.       

 

Referências 

BÍBLIA SAGRADA. Antigo e novo testamento. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. 2.ed. São Paulo: Editora da Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

BRASIL. Congresso Nacional. Lei Federal nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: Diário Oficial da União de 23/12/1996.

CATÃO, F. A educação no mundo pluralista. São Paulo: Paulinas, 1993.

CRUZ, T. M. L. Didática de ensino religioso: nas estradas da vida – um caminho a ser feito. São Paulo: FTD, 1997. (Coleção Conteúdo e Metodologia).

FIGUEIREDO, A. P. Ensino religioso: perspectivas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 1995.  

FORQUIN, J. C. Escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.

GRUEN, W. O ensino religioso na escola. Petrópolis: Vozes, 1995.

JUNQUEIRA, S. O desenvolvimento da experiência religiosa. Petrópolis: Vozes, 1995.

LOURENÇO, D. C. As práticas pedagógicas das escolas católicas nos anos iniciais do ensino fundamental à luz dos “Guias das Escolas Cristãs”: uma abordagem crítico-reflexiva. Ponta Grossa, 2014. 69 f. (Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Licenciatura em Pedagogia – Faculdade Sagrada Família). mimeo.

MO SUNG, J. Experiência de Deus: ilusão ou realidade? São Paulo: FTD, 1991.

PIAZZA, W. O. Religiões da humanidade. 3.ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

VIESSE, L. C. Um paradigma didático para o ensino religioso. Petrópolis: Vozes, 1994.

 

(*) Marcos Pereira dos Santos é doutorando e mestre em Educação, especialista em Matemática, especialista em Administração, Supervisão e Orientação Educacional, e licenciado em Matemática pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG/PR). Licenciado em Pedagogia pelo Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE/PR). Membro correspondente da Academia de Letras de Teófilo Otoni/MG desde abril de 2014. Escritor, poeta, cronista, articulista e pesquisador da área educacional (Formação de Professores, Tecnologias Educacionais e Educação Matemática). Professor adjunto da Faculdade Sagrada Família (FASF), junto a cursos de graduação (bacharelado/licenciatura) e pós-graduação lato sensu, em Ponta Grossa/PR. Endereço eletrônico: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

 

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