A morte de Tarcísio Meira e Paulo José deixa um vazio na dramaturgia brasileira

A dramaturgia brasileira perde muito de seu encantamento com a morte dos dois atores 

 

Por: Marcello Rollemberg | Jornal da USP

 

Atores são seres especiais. Vivem mil vidas, mudam de cara, de gestos, de voz. São eles, sempre, em essência, mas também são muitos outros, confundindo identidades. São como aquela definição pessoana sobre o poeta: como intérpretes, talvez sejam também fingidores de outra vida, mas fingem tão completamente que até fingem que é dor aquela que realmente sentem. Dores. E alegrias. E tristezas. Ou amores. E fingem ser imperadores, escritores, mecânicos e criadores de máquinas improváveis, bons-vivants. Atores. Fingidores? Intérpretes de uma outra essência, com personagem e vida real se confundindo, muitas vezes, e entrando no imaginário popular e se cristalizando na memória afetiva de cada espectador, de cada um que fez parte de sua plateia. Atores como Paulo José e Tarcísio Meira, que morreram na semana passada octogenários e uma vida plena de atuações por pelo menos seis décadas nos palcos, no cinema e, principalmente, na televisão – aquela caixa mágica que abre a porta dos lares e deixa personagens tridimensionais invadirem a sala, sentarem no sofá. Pronto: são parte da família. Pelo menos enquanto durar o teleteatro, a novela, o caso especial, o filme reprisado pela enésima vez mas sempre assistido com gosto. Atores.

 

E pode-se dizer, sem riscos de exageros, que Paulo José – morto aos 84 anos na última quarta-feira, dia 11 – e Tarcísio Meira, que morreu 24 horas depois, aos 85 anos, tenham sido a quintessência do que é ser ator.  Eram os únicos? Com certeza não. A dramaturgia brasileira está eivada de ótimos exemplos de atores essenciais, primordiais. Para ficarmos em apenas um nome: Fernanda Montenegro. Mas Paulo José e Tarcísio Meira representaram tudo aquilo que um ator almeja: o reconhecimento geral de seu talento, a aceitação popular, a imagem de um personagem congelada para sempre na memória do público. Para muitos – e põe muitos nisso – tanto Dom Pedro I quanto o capitão Rodrigo Cambará – do romance O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, levado para a TV e dirigida, justamente, por Paulo José – terão eternamente o rosto de Tarcísio Meira. Não importa o que os livros de história mostrem ou que outros atores se esforcem para fazer: mais do que representar, interpretar esses personagens, Tarcísio incorporou essas figuras. Serão sempre suas. Como o João Coragem do estrondoso sucesso Irmãos Coragem, de 1970,com quem ele foi confundido até o fim da vida.

 

Assim também como Paulo José, que será sempre a voz bem colocada e íntima de tantos documentários ou curta-metragens que fez questão de narrar. Ou, para uma geração mais velha, ele será até o fim dos tempos o preguiçoso e “cinema-novista” Macunaíma e o Shazan que construiu a quimérica Camicleta – uma mistura de “caminhão com bicicleta”, como ele explicou na novela O Primeiro Amor, de 1972, e depois no seriado que protagonizou ao lado de Flávio Migliaccio, seu fiel companheiro Xerife. Flávio morreu ano passado, e agora a Camicleta trafega entre nuvens.

Esses são apenas alguns pouquíssimos – mas determinantes – exemplos do que Paulo José e Tarcísio fizeram em sua longa vida artística. São dezenas e dezenas de personagens marcantes, emblemáticos naquilo que se convencionou hoje a chamar de “plataformas multimídia”: cinema, teatro e TV. “Acho que, para a dramaturgia, quem deixa uma contribuição maior é o Paulo José, que não escreveu muito, mas dirigiu e foi uma inteligência e liderança carismática para todos no teatro brasileiro moderno e contemporâneo, reverberando indiretamente na dramaturgia”, analisa o dramaturgo e professor do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP) Luiz Fernando Ramos. “Os dois são exemplos de profissionais em que vida e interpretação estiveram casadas e geraram muitos frutos. O Paulo mais eclético e poético, o Tarcísio mais convencional e amplo. Ambos, exemplares em seus domínios”, afirma ele, lembrando que, mesmo com todo o sucesso na TV, foi no cinema que eles tiveram alguns de seus momentos mais marcantes: “No caso de ambos, de modos diferentes, tornaram-se muito populares na TV, mas ofereceram suas melhores contribuições no cinema. Paulo, o padre jovem apaixonado, na estreia, em O Padre e a Moça, de 1966, e Macunaíma no apogeu. Tarcísio, o D. Pedro I encantador, em plena ditadura, e o canastrão absoluto no Idade da Terra do genial Glauber Rocha, que lhe ofereceu o melhor papel de sua vida”.

  

Poder e gentileza 

Tanto o gaúcho de Lavras do Sul Paulo José quanto o paulistano Tarcísio Meira começaram a construir suas carreiras ainda nos anos 1950, ambos nos palcos. Mas logo esses caminhos iriam se bifurcar (ou trifurcar). Enquanto Tarcísio já enveredava, em 1959, na TV Tupi – onde começaria a contracenar com Glória Menezes, que havia conhecido no teatro, e que seria sua companheira por quase uma vida inteira, nas telas e, principalmente, fora delas –, Paulo José se firmaria primeiro como homem do teatro (pisou firme no Teatro de Arena, no começo dos anos 1960) e do cinema. A televisão só entraria em sua vida em 1969, com a novela Véu de Noiva, da TV Globo.

A partir daí, construíram, cada um a seu modo, carreiras que fazem parte da história da dramaturgia brasileira. E aí, intérpretes e personagens se confundem definitivamente. Tarcísio, alto, forte, bonitão, seria para sempre o herói, o galã – expressão que ele odiava, frise-se, por achar “zombeteira” –, por mais que tivesse feito papeis dos mais distintos, como o tímido, caricato e engraçado Felipe, na novela Guerra dos Sexos, em 1983, ou o jagunço (que o deixou irreconhecível) Hermógenes, na adaptação televisiva de Grande Sertão: Veredas, de 1985. Não adiantou nem a fuga para personagens mais, digamos, “heterodoxos”, como o Aprígio de Beijo no Asfalto, que beija um moribundo no meio da rua na adaptação cinematográfica da peça de Nelson Rodrigues: Tarcísio Meira sempre será o “namoradão do Brasil”. 

     

Com Paulo José, o caminho foi diferente. De várias maneiras, o ator preferiu ser gauche – na vida e nos palcos, telinhas e telões. Seus personagens tinham um quê de outsider poético, de bon-vivant apaixonado e apaixonante, de uma espécie de terceira via que se equilibrava entre o maniqueísmo estereotipado do mocinho e do vilão. Fosse como os sedutores e sonhadores Paulo de Todas as Mulheres do Mundo (1966) e Edu, de Edu, Coração de Ouro (1967), o já citado Shazan ou o Alceu, da novela Um Anjo Caiu do Céu (de 2001, aquela em que seu personagem fala para o de Tarcísio Meira que “um dia se encontrarão no céu”), Paulo José corria em faixa própria. Tão própria que talvez não tivesse ator melhor para interpretar em Caminho das Índias (2009) o conhecido – e real – “profeta Gentileza”, uma figura emblemática nas ruas do Rio de Janeiro por vários anos. Afinal, Paulo José era um gentil full-time: ele espalhava bilhetinhos poéticos pela casa, cuja porta nunca estava trancada (como lembraram logo após sua morte suas três filhas com a atriz Dina Sfat, com quem viveu 17 anos) e aceitava narrar, de graça, filmes de diretores iniciantes, como recordou o jornalista e ex-aluno da ECA José Roberto Torero nas redes sociais.

Os dois atores são, de fato, parte indissociável e essencial desse grande puzzle que é a dramaturgia. Ou, como explica o ator Abílio Tavares, ex-diretor do Teatro da USP, o Tusp, e professor convidado do Departamento de Artes Cênicas da ECA: “Paulo José e Tarcísio Meira simbolizam a televisão, o cinema e o teatro. Tarcísio é a própria televisão, veículo que lhe trouxe a consagração máxima. Ele personifica o próprio poder da televisão, sua força imensa de alcance e comunicação em relação às outras linguagens. A própria imagem física do ator representa isso. Seus grandes papeis na televisão foram personagens de poder, mesmo aqueles de origem humilde como o valente garimpeiro João Coragem ou o empreendedor Antônio Dias em Escalada (de Lauro César Muniz, 1975). Eram personagens fortes, fosse pela dignidade, pelo senso de justiça ou pela determinação. Tarcísio personificou magistralmente ainda o poder devasso, em sua premiada criação para o personagem Dom Jerônimo Taveira em A Muralha (de Maria Adelaide Amaral, 1999)”.  

E Tavares continua, focando e analisando a trajetória de Paulo José. “Se por um lado Tarcísio encarnou o poder, Paulo José encarnou no teatro, na televisão e no cinema personagens um tanto ‘desalinhados’ aos padrões oficiais, como o ‘herói sem caráter’ Macunaíma, o boêmio Tézinho, em O Rei da Noite (de Hector Babenco, 1975), e Orestes, o incorrigível pai alcoólatra em Por Amor (de Manoel Carlos, 1997), entre tantos outros. Embora tenha tido uma brilhante carreira na televisão, onde além de ator atuou também como diretor, Paulo José encontrava especialmente no teatro e no cinema as grandes ‘casas’ de seu aparente ‘desalinhamento’.”

Fosse onde fosse – teatro, cinema, televisão –, Paulo José e Tarcísio Meira souberam fascinar como poucos. Porque, no final das contas, viver personagens, criá-los com dedicação, dar vida e forma àquilo que no começo eram palavras e ideias vai muito além de vestir um personagem para se despir dele no final do dia. É puro encantamento.

 

Fotos: USP Imagens  

 - Foto 1: Tarcísio Meira e Paulo José – Foto: Reprodução / Fotomontagem Jornal da USP

 - Foto 2: Tarcísio Meira como o capitão Rodrigo Cambará, na adaptação do romance O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, dirigida por Paulo José – Foto: Reprodução)

 

 - Foto 3: Paulo José como Macunaíma – Foto: Reprodução

 - Foto 4: Paulo José como Shazan – Foto: Reprodução

 

Leia o artigo original no Jornal da USP.

 

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