Olímpico por acaso: entrevista com Katia Rubio

Katia Rubio é professora associada da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE-USP) e membro da Academia Olímpica Brasileira

Por Redação/Jornal da USP - Editorias: Artigos - URL Curta: jornal.usp.br/?p=265413

Os Jogos Pan-Americanos repetem em mais essa edição a proeza de trazer a público a história de pessoas reconhecidas em pequenos círculos relacionados à própria modalidade, mas nem sempre do grande público. Esportes mais comerciais e visíveis habilitam as telas e popularizam os atletas que disputam as grandes competições. O certame pan-americano é a possibilidade de algumas modalidades alcançarem os noticiários esportivos, muito embora algumas delas nem alcançaram o programa olímpico, mas ali estão a cada quadriênio, dando aos atletas a oportunidade de serem reconhecidos por suas habilidades.

Não falo apenas do boliche, esqui aquático, fisiculturismo, patinação artística, patinação de velocidade, pelota basca, raquetebol e squash, modalidades que não constam do programa olímpico. Penso em modalidades nas quais alguns países se tornaram potências mundiais e, nessa condição, dominam competições de caráter global.

Os Jogos Pan-Americanos evidenciam um panorama da geopolítica esportiva americana (e não estadunidense) que comprova a condição brasileira de potência regional. Isso porque, mesmo enfrentando uma crise avassaladora, os resultados alcançados até este momento são muito expressivos. E isso não está relacionado apenas ao número de medalhas conquistadas, mas principalmente por dar visibilidade a atletas cuja trajetória é pouco conhecida do público.

No meu entendimento, a medalha é produto de um resultado que não representa aqueles minutos ou dias de competição. Ela é fruto de um processo pouco conhecido de quem não acompanha as competições ou o cotidiano do esporte. O que parece ser um resultado surpreendente é, na verdade, consequência da dedicação de pessoas abnegadas e comprometidas com um fazer que é, acima de tudo, social.

É o caso de Ygor de Oliveira, atleta que começou a jogar badminton em um projeto social no Rio de Janeiro, e de Isaquias Queiros, que aprendeu a remar e se tornou medalhista olímpico em um projeto social coordenado pelo atleta olímpico Jefferson Bispo Lacerda, em Ubaitaba, Bahia. Quase todos os projetos sociais que envolvem esporte no Brasil têm como proposta central a inclusão e o desenvolvimento de habilidades sociais. A revelação de talentos é um ganho secundário, que em casos como Ygor e Isaquias pode representar um caminho profissional de reconhecimento internacional. Outras tantas garotas e garotos deste país tentaram o mesmo caminho, mas não conseguiram chegar, seja pela falta de condições materiais, pelas características individuais ou, ainda, por habilidades emocionais que fazem a diferença entre o atleta mediano e o excepcional.

A comparação parece banal, mas há quem expresse a impotência, diante da grandiosidade da tarefa e dos parcos recursos pessoais para enfrentá-la, com a frase: “É muita areia para o meu caminhãozinho”.

A vida do atleta mostra isso. Ninguém, ainda em nível infanto, chega a ser olímpico, assim como não se vê um bebê correr antes de ter engatinhado ou andado, porque o desenvolvimento segue etapas que não podem ser puladas. Os enfrentamentos são proporcionais aos recursos que cada ser humano desenvolve ao longo da existência. Os erros e as derrotas, muito mais do que os acertos e a vitória, levam à maturidade necessária para os grande embates.

Ao longo de minha pesquisa, ouvi narrativas que me espantaram por mostrar que alguns atletas olímpicos queimaram etapas, ou melhor, que tiveram abreviadas as fases do seu desenvolvimento esportivo para chegar à competição olímpica.

Saltaram do patamar de campeões regionais para a seleção por força de circunstâncias sobre as quais não tinham qualquer controle. Isso porque os verdadeiros merecedores da vaga foram destituídos da posição por lesão, morte ou jogo político. Felizes com a posição secundária que ocupavam, se viram no olho do furacão.

Isso me faz lembrar de uma história que eu ouvia quando criança.

Conta a fábula que certa vez um homem viu uma fenda se abrir em um casulo de onde sairia uma borboleta. Diante da pressa que tinha em resolver as coisas de sua própria vida decidiu antecipar aquele lento processo. Com seu canivete abriu um buraco com o tamanho suficiente para que a borboleta pudesse sair. Para seu espanto, viu nascer um ser disforme e murcho, com as asas amassadas, que se retorcia como se sentisse dor. O homem esperava que com a luz e o calor aquilo rapidamente se resolvesse, mas para sua tristeza aquela protoborboleta cambaleou e morreu, sem ter nunca experimentado o prazer de voar. A arrogância do homem que lhe rompeu o casulo impediu que a lagarta, a seu tempo e com seu esforço, tivesse as condições para amadurecer, se tornar uma borboleta e voar.

Aos atletas que tiveram a trajetória marcada pela antecipação de seu processo, denominei “olímpicos por acaso”. Embora pareça um paradoxo, isso de fato marcou a vida de algumas pessoas. Em princípio, por levá-los a pertencer a um grupo tão seleto que, querendo ou não, entrou para a história, justamente por ser destinado a poucos. E porque, assim como no caso da lagarta e da borboleta, o preço pago por esses atletas expostos a uma circunstância para a qual não estavam preparados foi a perda da própria identidade.

Leia a matéria original no Jornal da USP.

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